Seixo: uma Comunidade Cultural

A maior riqueza que o Seixo tem é, sem dúvida, as suas gentes. É um povo que vive e ama a sua terra e as suas origens, que tem orgulho quando lhes falam do seu passado, que vive para o trabalho, mas que participa como ninguém na vida colectiva e que se une nas dificuldades ou na prossecução dos interesses da comunidade.
É um povo solidário e com espírito comunitário ainda fortemente visível em variados aspectos: social, cultural, religioso e económico. É este enorme espírito comunitário que leva a população do Seixo a unir-se e a juntar esforços para fins altruístas ou em benefício do desenvolvimento da comunidade – esta acção está bem patente na construção de casas para pobres, na construção do Centro de Bem-estar Infantil, no Salão Paroquial, no Campo de Jogos, no Centro de Dia e em todas as obras de interesse para a Freguesia (sem esperar apoios municipais ou governamentais de relevo)

A Freguesia do Seixo apresenta, sem dúvida, algumas características próprias bem definidas e distintivas, no concelho de Mira. Entre outras, podem salientar-se as seguintes:

– a solidariedade fortemente comunitária dos seus habitantes, com um forte espírito de iniciativa; – a união interna e externa dos seus agregados familiares, com o seu amor ao trabalho e à terra que só produz à custa de muito suor e labor;

– o elevado número de pessoas diplomadas com cursos universitários, contrastando com um elevado analfabetismo ( ainda de 16,9% contra 12,9% no concelho e 14% na Região Centro do país (1);

– uma forte tradição nos domínios do teatro e da música, aqui quase considerados como aptidões inatas.
Quanto ao teatro, apareceram grupos ligados aos movimentos ou pias associações da Igreja que representavam as suas peças nos sótãos de casas particulares como a de Afonso Catharino e a antiga residência paroquial, a norte da Igreja Nova junto à actual estrada. Mais tarde, em 1946 ???, construiu-se a chamada Juventude, a sede da Acção Católica Rural, edifício ainda hoje existente no número ????? da actual rua P.e São Miguel. Aqui, representava o grupo da A.C.R, por altura das Festas do Natal, as peças que ensaiavam em cada ano. Os Milagres de Santo António e Frei Luís de Sousa de Almeida Garret, por exemplo, são peças que ficaram bem vivas na memória de todos os que as viram representar.
Mais tarde, entre 1942 e os anos 70, constituiu-se o grupo dos estudantes conhecido, por oposição, aos dos cavadores da enxada, como Associação dos Pisadores da Calçada, fazendo o nome jus aos muitos estudantes que, durante as suas férias grandes, se viam continuamente a calcorrear as ruas da freguesia, parecendo nada ter que fazer, por o seu estatuto de estudantes os libertar da ajuda à sua família nos trabalhos agrícolas. Festejou este grupo efusivamente as suas bodas de prata em 1968, tendo convidado para o efeito todos os antigos Pisadores e suas famílias. Houve copo de água, com diversos discursos a propósito, e à noite representou-se o drama Todos eram Meus Filhos, de Arthur Miller. O Auto da Barca do Inferno de G. Vicente, Mater Dolorosa de Júlio Dantas, A Muralha, de Calvo Sotello, o Processo de Jesus, de Diego Fabri, A Barca Sem Pescador de Alejandro Casona, A Forja de Alves Redol são algumas das glórias do grupo, como exemplo de encenações mais modernas fugindo aos dramas de faca e alguidar. Foi pena que alterações como a ocupação laboral dos estudantes durante o período de férias, o fascínio do pequeno écran e uma maior facilidade de transportes pessoais à disposição da malta, aliados à falta de um líder, tivessem ditado a extinção da referida associação.

Casa Gandaresa do Seixo

Um dos momentos muito importantes na história da casa gandaresa seixense era o barreiro.

Tudo começava em ambiente festivo. Após o noivado (o pedido de casamento, no Seixo), as famílias e os respectivos noivos pensavam em construir a sua casa, num dos terrenos da família. Para tal, num primeiro passo, procediam à extracção ( à tiradela) do barro ou da areia grossa e gorda para os adobes, de uma cova com cerca de 4 x 4 x 5 metros. À falta de máquinas, a força era a dos braços humanos que, à pazada e com recurso à técnica das bancadas (3 ou 4 patamares, em escadaria), permitia que a areia fosse sucessiva e continuamente atirada das bancadas inferiores para as superiores, até à superfície, pelos homens que se encontravam nos diferentes patamares. Depois de se deixar escorrer durante alguns dias, procedia-se à queimadela da cal ( entre 6 a 7 toneladas ) que tinha sido previamente acarretada do Barrocão- Cantanhede, em 7 carros de boi. Descarregada e distribuída sobre o monte de areia, com rebordos a ampará-la, deitava-se-lhe por cima a quantidade de água julgada necessária para a sua pulverização, cobrindo-se, em seguida com a areia dos rebordos. Passado o tempo suficiente para conclusão da operação anterior (3 dias), fazia-se uma primeira mistura da cal com a areia (o argamassar). Logo a juventude adivinhava e se oferecia ou pura e simplesmente comparecia para participar no barreiro, que seria, normalmente, no Sábado seguinte, da parte da tarde.

Apetrechados com os instrumentos necessários (carros de mão, padiolas, enxadas, pás, adobeiras para os diferentes tipos de adobes que se queriam tender, colheres de pedreiro), mais ou menos garridamente vestidos, todos lá iam para a cova da areia, onde, num amplo campo previamente alisado, seriam tendidos os cerca de 12.000 adobos necessários para a obra. Não havia convites directos, nem jornas nem trocas; aparecia quem podia, principalmente a juventude, não negando ninguém a sua colaboração. O barreiro era, pois uma ajuntada de amigos que, voluntariamente e por tradição, comandados por um mandador, uniam os seus esforços para fabricar todos os adobes necessários para a construção da casa para o novo casal.

Assim, no dia do barreiro, homens com galochas ou simples câmaras de borracha a proteger-lhes as pernas, para evitar as queimaduras, amassavam muito bem o monte de argamassa atrás referido, tendo o cuidado de desfazer qualquer torrão ou grume de cal que ainda estivesse em pedra, pois este poderia provocar o rebentamento do adobe. A juventude acarretava a massa preparada em padiolas ou carros de mão de uma roda, despejando-a dentro das adobeiras, onde os responsáveis a comprimiam e alisavam pelo rebordo superior, retirando-lhe depois a adobeira para fazer os adobes seguintes.

Nas casas mais antigas, os adobes eram fabricados de arazil ou de barro arenoso com uma boa quantidade de palhas à mistura. Mais recentemente, talvez por maior dificuldade no manejar daquele material e menor qualidade do produto, começaram então a fazer-se dessa areia especial muito existente no subsolo da Gândara e no Seixo Para uma casa, fabricavam-se normalmente três tipos de adobes, aproximadamente, com as seguintes medidas: – os adobes de casa com 42 x 30 x 10 cm, para as paredes exteriores;

– os adobes de ¾, com 42 x 25 x 10 cm, para as paredes interiores;

– os adobes de muro, com 45 x 20 x 10 cm.

Tudo no meio de cânticos, de galhofa, de alegria, mas em trabalho árduo e pesado. A recompensa para todos e cada um era a certeza de que, em iguais circunstâncias, não faltaria idêntica ajuda. Para a ceia, preparava-se a tradicional caldeirada de papas de farinha de milho com açúcar, em casa da noiva. Estas eram comidas em círculo à volta das caldeiras de cobre, onde cada um enchia a sua colher, todos acachapados em esteiras estendidas no chão. Diz-se que alguns, na reinação, a dada altura da refeição, se levantavam e davam uns pulos valentes para conseguirem arranjar mais espaço na barriga para mais algumas papas. Seguia-se um pequeno bailarico com cantares à desgarrada e ao som da gaita de beiços (a harmónica), onde não podiam faltar, entre outras danças, as modinhas mais típicas da terra: “Já hoje comi tramoços”, o “lindo par de ramos verdes” e “ Ai! Que lindo par! “(1).

E esta solidariedade continuava na viradela dos adobes (quando estes eram colocados de face e limpos nos rebordos e fundo, aproximadamente, um mês depois do barreiro), na ajuntada com os carros dos bois para os transportar para o sítio da obra, onde eram devidamente empilhados, e durante todo o alvoramento da casa.

Os pais mais briosos e de mais posses tinham empenho em entregar ao novo casal a casa fechada, isto é, já telhada, com portas e janelas, com a cozinha e, no mínimo, um quarto funcional. Assim, na maioria dos casos, no dia do casamento, os noivos já podiam dormir na sua casa nova e tinham a vida preparada para iniciar com algum sucesso a sua independência familiar.

A Casa Gandaresa em Seixo de Mira está perfeitamente adaptada ao seu mundo rural de intensa actividade agrícola. Nela, há espaço não só para a família que a habita (a moradia propriamente dita, com ou sem um alpendre), mas também, em local apropriado, para currais, cortelhas e galinheiros para os animais domésticos essenciais; espaço ainda para as diversas alfaias agrícolas e pastos para alimentação dos vivos (o pátio e os telheiros). O pátio coberto, em frente ao grande portão de entrada, era forrado com tábuas sobre traves de madeira, na parte superior, servindo assim de celeiro e de local ideal para as andorinhas fazerem os seus ninhos. Na parte interior, a parede do seu vão de passagem era sustentada por um archete de curiosa técnica de construção: adobos postos de cutelo, ligados apenas com argamassa. O pátio descoberto ( a estrumeira ) servia para guardar as agulhas e rapões espalhados ou em monte. A estrumeira, antigamente, ocupava todo o pátio. Mais recentemente, a parte do pátio em frente à habitação, estava protegida dos animais por um muro, com cancela, tinha o piso cimentado e um parreiral suportado por colunas de adobos e traves de madeira e arame ou colunas e arcos de betão armado, com arames de suporte. Para a preparação e secagem dos cereais, havia a eira; e para a arrecadação dos mesmos e outros produtos da terra, a casa da eira ou do forno, a casa de arrumação, os sótãos ou sobrados.

Na maioria delas, nos últimos tempos, para as pessoas fazerem as necessidades (fisiológicas) e de higiene pessoal, havia já casas de banho com sanita, lavabo e chuveiro de água fria e quente. Na década de cinquenta, as casas de banho eram um pequeno cubículo chamado retrete, onde havia um estrado de madeira elevado à altura de uma cadeira, normalmente, com dois buracos arredondados, com tampas que se retiravam na altura do uso. Isto permitia já a posição mais cómoda de se aliviar sentado e de evitar percalços indesejados e indesejáveis nos pés, pois que o gandarês, dada a maciez das areias que pisava, passava a sua vida quase toda descalço. Assim ia para as terras, para a Igreja, para as feiras, à vila e comarca, para a escola, assim jogava futebol… Quando muito, nas manhãs de Inverno mais rigoroso, punha uns tamancos ou calçava umas chancas. Os sapatos, nas deslocações que os exigiam, iam às costas até as exigências sociais não o permitirem de todo. Anteriormente àquela data, aliviava-se de cócoras nos simples abaixadouros ou covas ao ar livre, em sítio prederterminado, normalmente, sob uma figueira, a única árvore quase sempre existente no pátio da habitação. Papel higiénico ainda não se sonhava; a sua substituição dependia do que cada um encontrasse disponível, no momento, sendo já um qualquer pedaço de papel pardo de embrulho uma grande sorte.

Para abastecimento de água para as necessidades da casa, dada a sua grande abundância no subsolo, faziam-se os poços no pátio, normalmente sob um telheiro. A água era extraída manualmente: ou com um balde e uma corda, fazendo-o mergulhar com alguma perícia de movimentos lateralizantes e elevando-o depois de cheio; ou com uma picota ou cegonha. Em

ambos os casos, o risco de se cair no poço era muito frequente. Depois apareceram as bombas, inicialmente, feitas de um pinheiro sem grandes mazelas, já bem forte e direito, furado com mestria, longitudinalmente, pelo miolo. Nesse buraco eram colocadas as buchas de madeira com cintas de cabedal e alçapão (válvulas de retenção e passagem): a inferior fixa, e a superior móvel através de um veio de madeira que a ligava à rabela (arrabela) e conforme o movimento que a esta se imprimia, lhe provocava um movimento de subida-descida. No corpo da bomba ferrado com água, criava-se, então, uma depressão que fazia funcionar os alçapões das buchas deixando passar a água que saía por uma mangueira.

Era, de facto, uma maravilha de obra artesanal a construção destas bombas que ficavam prontas a funcionar em menos de uma dia. As bombas de pinheiro foram depois substituídas por graciosas bombas de ferro fundido em forma de jarro ou pelas bombas de roda de balanço, e, mais tarde, pelas bombas de lusalite e pelos motores.

A casa gandaresa seixense era uma construção de rés-do-chão, feita de adobos. A sua construção era económica porque as principais matérias primas existiam nos terrenos da maioria dos proprietários: areias ou barros para os adobes e argamassas; e pinheiros para cumes, terças, burras, barrotes, ripas, portas, janelas, soalhos, tectos, mobílias e mesmo alfaias agrícolas.

Além disso, o seu baixo custo ficava também a dever-se ao tradicional grande espírito de solidariedade e de entreajuda comunitária, pelo qual a mão de obra era gratuita até a casa estar telhada. O povo do Seixo bem compreendia a máxima de que “quem casa quer casa”. Esta era, normalmente, construída à beira de uma estrada ou caminho principal (1), com telheiros, currais e pátio fechado por muros, dando-lhe a privacidade e a segurança indispensáveis à vida familiar. Perfilavam-se umas ao lado das outras formando longas ruas.

A sua planta (1) quase não era necessária aos mestres, pois a configuração era praticamente toda a mesma e tão interiorizada e bem conhecida que quase se podia comparar à construção dos ninhos pelas aves . Na sua estrutura, nada de vigas ou colunas de cimento, nada de ferro. Para a sua solidez e consistência, as únicas técnicas eram a ligação dos adobos com uma massa da mesma qualidade (só areia, com cal amassada) e o travamento dos adobos sobrepondo-os desfasadamente, pelo meio de uns com os outros, o que era mais essencial nas extremidades angulares. Uns bons alicerces com adobes atravessados (2) e uma correcta verticalidade das paredes conferida pelo fio de prumo faziam o resto. As massas de reboco, quando existente, eram do mesmo material dos adobes.

Quanto ao desenho, a casa gandaresa configurava-se com o L maiúsculo, na sua posição normal ou simétrica consoante o lado da rua em que se situava.

A humidade salitrosa do solo subindo por osmose, aproximadamente, até à altura de 1m cria uma espécie de tinha que vai desagregando os adobes. Isto é a grande pecha para a conservação das casas gandaresas. Alicerces em pedra, por exemplo, seria uma das soluções.

da casa ficasse com a máxima exposição possível ao sol. Na casa gandaresa típica do Seixo, à base do L , correspondia a frente ou fachada da casa com aproximadamente 15m de largura por 4 m de altura até ao beiral sobranceiro à cimalha. Na fachada, salientavam-se: a porta de entrada para a sala, ladeada, simetricamente, de duas janelas (uma para a iluminação da mesma sala e outra para iluminação da chamada meia-sala; o portão de duas folhas, com aldraba, de acesso ao pátio; e duas ventaneiras para arejamento do sótão e da casa de arrumação.

Os adobes da última fiada da frente da casa eram colocados transversalmente formando, assim, uma saliência para o exterior da fachada. Esta podia ser de adobos à vista ou mais ou menos ricamente embelezada, conforme as posses dos donos. Surgiam, então, belas cimalhas molduradas das quais podiam ainda pender elegantes ornatos, encimadas por telhas de beiral pintadas num contraste de laranja e branco. Em cantaria de pedra de Ançã, existente nas proximidades, podiam ser as soleiras, as ombreiras, as padieiras ( padiais), as ventaneiras e uma pequena placa com as iniciais do nome do dono e o ano de construção. Em toda a largura inferior da parede frontal, salientava-se uma cinta com 90 cm de altura a partir do solo, em massa crespa, constituída por sucessivos rectângulos, quadrados ou losangos, entrecortados por estreitas faixas verticais ou diagonais que poderiam ter extremidade semicirculares. O telhado de duas águas, tanto no corpo da frente como no lateral, era, inicialmente, de telha caleira (de meia-cana) ou de canudo (também chamada telha de Salgueiro, pelo local do seu fabrico); e mais tarde de telha marselha ou telha francesa. A primeira teria origem árabe; a segunda, no país e região que os nomes indicam. Havia telhas próprias para o cume em cujas extremidades poderiam figurar objectos cerâmicos de embelezamento, figuras decorativas, em barro vermelho, como, por exemplo, pombas, águias, galos, gatos, leões, pináculos de vários formatos ou simples pitorros, transmitindo alegria ou a crença de forças protectoras contra os maus espíritos .

A sala do Senhor, o compartimento mais nobre da casa, era plurifuncional. Servia de sala de banquete nas pequenas festas familiares; de sala de receber o Senhor, na visita pascal; de local para a realização das rasgadelas de trapos; de última despedida para os membros falecidos da família. A sua mobília era sóbria: uma cómoda, com o crucifixo ou oratório e o relógio de sala, algumas cadeiras, e alguns quadros religiosos dependurados nas paredes.

Ao lado desta, com uma porta de acesso, com ou sem bandeira, ficava a meia-sala que, normalmente, desempenhava a função de quarto especial para doenças e partos ou visitas. A sua mobília podia ser uma cama de ferro, uma mesa de cabeceira, uma cadeira, um roupeiro ou guarda-fatos, cabides e, em alguns casos, um lavatório com bacia, jarro e balde de esmalte, numa estrutura de ferro forjado. Em princípio ambos os compartimentos tinham soalho e artísticos tectos em madeira de pinho, assentes, respectivamente, sobre e sob traves da mesma madeira. No caso do soalho, as traves eram ligeiramente levantados do chão, existindo buracos nas paredes para permitir a circulação do ar e a circulação dos gatos na sua actividade de caça ratos. No caso do tecto, as traves poderiam ainda ter tábuas por cima, permitindo o seu aproveitamento como sótão para arrumações.

Ainda ocupando parte da fachada da casa, estava o celeiro ou casa de arrumação, que poderia ter um aproveitamento na parte superior, por baixo do telhado, Neste caso, havia uma escada de acesso. em madeira.

Em linha perpendicular à fachada, atrás da sala e da meia-sala situavam-se, frente a frente, dois quartos, separados por um corredor que dava acesso à porta interior da sala e à porta interior da cozinha. A mobília destes quartos era muito pobre, sendo a principal uma cama, com um colchão ou enxergão de palha, feito em casa, ou simples esteiras sobre agulhas ou palha de centeio. Este era guarnecido com uma ou duas cobertas tecidas, em teares existentes na aldeia, com tiras de roupas velhas preparadas nos

divertidos serões das rasgadelas. Em casas mais governadas, podia ainda haver grossos cobertores lãzudos de papa ou mantas de pelúcia e os guarda-camas ou colchas de damasco. Dos cabides ou simples cavilhas de ferro espetadas na parede pendia o essencial da roupa usual: o gabão, o xaile, o chapéu, etc.

A cozinha era o grande espaço de permanência e convívio familiar, fora das horas de trabalho, durante as refeições ou os serões à noite. A ela se tinha acesso, pelo lado do pátio, por uma porta de gonzos, com tramela, no exterior, e ferrolho de pau por dentro, uma gateira para entrada e saída dos gatos. Ao lado da porta, havia uma pequena janela de iluminação.

O seu mobiliário era a pedra cantareira onde se poisava a cântara da água; um largo armário ou guarda- loiças que ia até à pilheira sob a chaminé, sendo mais alto no canto oposto a esta. A partir do armário alto, ligava-se com a chaminé por uma cantareira ou prateleira que acabava por cincundar a chaminé, onde se colocavam as louças e outros trastes. As mais usuais eram as seguintes: alguidares e malgas vareiras, alguidares de barro vermelho por vidrar, tijalas, bacias, pratos, canecas, cântaros…

O borralho ou lareira, ligeiramente elevado em relação ao soalho da cozinha ou chão de terra batida, era encimado por larga chaminé, sustentada por traves de madeira apoiadas nas paredes e no peão ( pé de suporte constituído por uma coluna de madeira colocada verticalmente, para suportar o peso da parede da chaminé ) e que servia ainda para o candelabro, o chaveiro, o suporte de cebolas, alhos, panos, etc.. Sob a chaminé, de cada lado do borralho, havia as pilheiras, bancos toscos compridos onde os elementos da família se sentavam para se aquecerem, conversarem, rezarem, etc.. Lateralmente às pilheiras, ficava a parede do fundo do borralho onde se destacava a boca do forno de cozer a boroa. A um dos cantos do borralho, havia, antigamente, o cambeirode madeira, espécie de guindaste, formado por uma trave vertical, com diversos ranhuras na parte inferior, giratória, ligada a outra horizontal quando em serviço, da qual pendia um ferro com forma arredondada na parte inferior, para suporte dos arcos das panelas, marmitas e das caldeiras de cobre. Uma terceira trave era fixada com uma dobradiça à trave horizontal e, quando em serviço, fazia mais ou menos uma diagonal com as duas anteriores, afastando ou aproximando as panelas do fogo, conforme a ranhura em que se encaixava e a rotação que se dava ao cambeiro. O mesmo efeito se conseguia mediante a utilização de três ganchos de comprimento diferente cravados na parte inferior do cambeiro. Quando fora de serviço, rodava completamente até encostar à parede. Era um interessante e original processo de suspender as panelas, marmitas e caldeiras, substituindo as trempes actuais ou as panelas já com pés.

Ainda entre o borralho e a chaminé, partindo do rebordo da boca do forno para a parede mais inclinada da chaminé, se colocava, durante os meses húmidos e frios a escadeirada da lenha, assente sobre dois paus, enxugando-a, assim, sobre o calor e o fumo da fogueira. Ainda no vão da chaminé se colocava o varal para secar os enchidos de porco: chouriças ou linguiças, paio ou palaio e morcelas.

Entre a janela e a lareira, ficava a mesa das refeições, ladeada por dois bancos compridos, pois, geralmente, a família era grande. Sobre esta, havia normalmente uma tábua suspensa dos barrotes do tecto, por fios de arame, chamada a tábua da broa , que servia para a guardar dos gatos, cães e ratos, e mesmo para regrar o seu consumo pelas crianças.

À cozinha, seguia-se a casa do forno que podia também acumular as funções de casa da eira, de cozinha secundária ou mesmo de quarto de dormir para os rapazes. Normalmente, havia uma porta que ligava as duas divisões.

Nas casas mais ricas, ou em outras já mais modernas, podia haver uma sala de jantar mais luxuosa, onde, a par de mobílias de maior qualidade, brilhavam já jogos de louça da Vista Alegre e variados copos de vidro já mais cristalizado.

Mais antigamente, a iluminação , além da fogueira do borralho, era feita com torcidas mergulhadas em azeite numa concha furada na charneira, em candeias de lata e candeeiros (de pé e de companhia); mais rara e ultimamente, com bicos de acetilene ( carborete) e gasómetros. Após a vulgarização do petróleo, este substituiu, normalmente, o azeite nesta função até meados da década de 60 do século passado. De facto, a electricidade só chegou ao Seixo por volta de 1955 e às Cabeças-Verdes, nos inícios na década de 60.

Retirado da monografia: A CASA GANDARESA EM SEIXO DE MIRA: Sua vida, usos e tradições de Maria Isabel Oliveira das Neves

A Saudosa Igreja Velha

O centro congregador desta vida religiosa, materialmente, era a denominada Igreja Velha, por oposição à Igreja Nova cuja construção começara a ser idealizada nos inícios da década de 40, sob a presidência do então pároco padre Basílio da Costa Morgado que, em 1946, procedeu à Escritura da doação do terreno para a mesma. Iniciada a sua construção no tempo do P.e António Carvalhais, sua grande alma e dinamizador das campanhas de trabalho e dos cortejos para recolha de fundos, foi benzida solenemente em 23 de Setembro de 1956, pelas dezassete horas, com grande solenidade e festejos da população, como comprova a notícia da BOA NOVA, semanário da Vila de Cantanhede, inserida no jornal de 28 de Setembro do mesmo ano.

A saudosa Igreja Velha, entretanto, foi, infelizmente, demolida em Novembro de 1964,(1) quando quase cumpria o seu primeiro centenário. Era uma Igreja com alguma beleza quer na sua configuração, quer nos pormenores das talhas douradas dos seus altares. Substituindo a primitiva Capela, a sua construção iniciou-se em 1865, e, em Janeiro do ano seguinte, “ a capella-mor está em estado decente e em termos de nella se poder celebrar depois de benzida (…) O corpo ainda (…) se conserva em bruto, sem solho e forro…” (2). Como recomendavam as regras canónicas, a orientação do edifício era nascente-poente. Tinha 14,70 m de cumprimento por 6,37 de largura e 4,77 de altura. Além da grande e principal porta de entrada dos fiéis, voltada para poente, tinha outra para sul – a porta das mulheres – e uma terceira na sacristia lateral do lado norte – a chamada sacristia velha -, voltada para poente, por onde entravam os homens, dando acesso à chamada sacristia velha. Havia quatro janelas no corpo da nave ( duas para norte e duas para sul); uma sobre a porta principal para iluminação do coro; e duas na capela-mor.

Entrando pela porta principal, do lado sul, a partir do fundo, havia a escada de acesso à torre e ao coro, o baptistério, uma grande cruz da Santa Missão Redentorista, a porta de entrada das mulheres, a capela do Sagrado Coração de Jesus com um grande arco de entrada e formando uma saliência para sul; do lado direito, ao meio da nave ficava o púlpito e, perto do gradeamento da comunhão, o harmónio construído pelo Pe Ribau. No espaço superior e seguinte à porta de entrada, havia o coro. A nave da igreja era separada da capela-mor por uma balaustrada, onde era distribuída a comunhão. A capela-mor encontrava-se em plano superior ao do corpo da Igreja. A seguir à balaustrada, havia um arco em pedra de ançã: à direita deste ficava o altar do Sagrado Coração de Maria (do mesmo lado da capela do Sagrado Coração de Jesus); à sua esquerda, ficava o altar de Nossa Senhora do Carmo. No fundo da capela-mor, e em plano superior a esta, ficava o altar-mor com um bonito retábulo com trono para exposição do SS.mo Sacramento, fechado, no fundo, com um bonito quadro religioso de pintura a óleo. Entrava-se das sacristias para a capela-mor por duas portas: uma do lado norte, com ligação à porta de entrada dos homens voltada para poente; outra, do lado sul, dando para a sacristia nova, onde ultimamente o sacerdote se paramentava e homens e crianças também paticipavam nos actos litúrgicos. A sacristia nova comunicava com a capela do Sagrado Coração de Jesus por meio de uma porta. Estas duas dependências mais a capela da pia baptismal e a torre foram construídas pelo povo, no tempo do Curato do P.e António Ribeiro S. Miguel, e a pedido do bispo D. António Antunes que tendo vindo fazer o tríduo da festa de 13 a 15 de Agosto de 1916 “pediu ao povo que fizessem uma capella para a imagem do Sagrado Coração de Jesus, que andava por casas de renda, pois ora estava no throno, ora por cima dos altares. O povo attendeu ao prelado; e, como era necessário fazer o baptistério para collocar a pia que estava a um canto da capella, vedada por uma graude; e uma outra sacristia, porque a de norte era pequena e muito acanhada principalmente nas festas, o Cura António Ribeiro de São Miguel nomeou a seguinte comissão para angariar donativos e proceder às obras”. Seguem-se os nomes dos elementos da comissão dos lugares do Seixo e Cabeças-Verdes. As obras principiaram em janeiro de 1917 e em 15 de Agosto do mesmo ano foi benzida a Capella do Coração de Jesus, embora faltasse guarnecer o altar com as colunas e obras de talha.

Na talha do alta-mor, havia: um Cristo crucificado, Santa Ana, S. José, S. Miguel, S. Jorge, Santo Inácio, S. Brás, S. António, Santa Margarida e Santa Quitéria.

Foi pena que na altura da sua demolição não houvesse ainda sensibilidade para a preservação destes edifícios públicos nem, ao menos, para salvaguardar algum deste património que assim terminou ingloriamente por algumas casas particulares.

(1) Esta data foi indicada por sr. Evangelista Teixeira que se recorda dela por na ocasião estar imigrado em França e lho ter contado o Joaquim Lourenço (Maná) que para aí também fora de assalto, em Março de 1965.

(2) A.U.C, Fundo do cabido cx. 19, nº 24