“Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”. Efectivamente, como sugere o ditado popular, todas as terras têm as suas próprias tradições ou tradições comuns adaptadas à sua realidade, fazendo jus ao ditado de que “quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto”.

Não podendo descrever aqui todas as tradições do Seixo, escolheram-se as que se julgam mais representativas da alma do seu povo: a Novena do Menino Jesus pelo Natal, o Cortejo dos Reis, o Cantar das Almas Santas, a Acção de Graças, as Maias e a Matança do porco.

É uma tradição antiga da Igreja preparar, remotamente, o Natal com o tempo do Advento e, mais proximamente, com a novena das antífonas maiores começadas por Ó, entre 17 e 24 de Dezembro: Então nestes dias de Dezembro, na recta final para o Natal, fazia-se na Igreja Velha, à noite, a novena do Menino Jesus , Que era uma tradição já antiga em 1918, atesta-o um requerimento do Pe São Miguel ao Sr. D. Manuel, Bispo de Coimbra, com a data de 24 de Abril desse ano, nos seguintes termos:

“ O Presbytero António Ribeiro de S. Miguel tem a honra de expor a V. Ex.ciª Rev.ma o seguinte: 1. Que há muitos annos se fazem na Capella d´este Curato do Seixo de Mira as devoções dos Meses de Maria em Maio; de Jesus em Junho; do Rosário em Outubro: das Almas em Novembro; novena do Menino Jesus em Dezembro; e Tríduo ao S. C. de Jesus. 2. Que estas devoções, por causa dos trabalhos agrícolas, que aqui são contínuos, se faziam sempre de noite, e eram presididas por uma filha de Maria, antes da Criação do Curato.

3. Que, felismente, não se dão aqui os inconvenientes, previstos no venerando decreto de V. Exª Rev.ma, prohibitivo dos actos de culto a esta hora, pois os dois lugares que compõem o Curato são quasi juntos e agrupados, em volta da Capella, e o povo porta-se com respeito nos actos do culto. 4. Que não se fazendo àquella hora estas devoções não se farão jamais, com bastante ruína espiritual d´estes povos, e até escândalo, visto que a auctoridade Administrativa, aqui, nunca prohibiu que se exercesse o culto de noite.

Em vista do exposto, e annuindo às instancias do povo, eu peço a V. Ex.ª Rev.ma que auctorise aquelles actos, principiando uma hora depois do sol posto, se não puder ser antes, tomando eu toda a responsabilidade na manutenção da ordem tanto dentro como fóra da Capella.

A resposta ao requerimento, com a data de vinte e seis, foi positiva: “ Como pede…”

A novena era então presidida por uma Filha de Maria que lhe dava sequência e entoava os cânticos a que logo se associavam as vozes agudas e trémulas de algumas mulheres, enchendo de alegria a garotada, que as acompanhava principalmente na parte do refrão. A novena era toda cantada, seguindo-se a cada quadra o refrão e o Padre-Nosso e a Avé-Maria também cantados cantados. (1)

O Natal celebrava-se, então, de uma forma simples, mais religiosa, nada comercial: uma concha com azeite e uma torcida acesa junto do “Senhor” ou, mais raramente, de um pequeno presépio, na sala; umas batatas com bacalhau e uns filhóses feitos pela mãe durante a tarde; à noite, um serão familiar mais prolongado à espera da Missa do Galo; uns rebuçados para pôr nos chancas ou tamanquinhos que as crianças tinham o cuidado de pôr debaixo da chaminé aonde, na manhã seguinte, corriam pressurosas.

1. Já se abriram os Céus,

Veio o tempo venturoso,

Em que Maria nos traz

Aos mortais o maior gozo.

CORO

Vinde, ó pastores,

Com sumo prazer,

Redentor do mundo

´Stá para nascer – bis

Vinde, ó pastores,

Com sua (suma) alegria,

Redentor do mundo

Nasce de Maria – bis

___________

2. Ó Belém, terra ditosa,

Aposento de Maria;

A Redenção para os homens,

Para os anjos, a alegria.

3. A noite mais venturosa

Já não tarda muito tempo.

Alegrai-vos, ó mortais,

De sumo contentamento.

4. Árvore santa de Jassé

Dá um ramo desejado,

O fruto que dela nasce

É o Verbo Encarnado

5. Do varão nasceu a vara,

Da vara nasceu a flor,

De Jassé nasceu David, ou: Da flor nasceu Maria

De David o Redentor. De Maria, o Redentor.

6. Eva nos fez desgraçados

Comeu do pomo vedado;

Maria nos traz a graça

Em seu ventre (?) abençoado ( fruto )

7. A virgem Santa nos traz

A redenção aos mortais.

Está perto a sua vinda,

A Virgem nos dá sinais.

8. As promessas já são cumpridas

Do Profeta Isaías:

Jesus nasceu para nós,

Felizes são nossos dias.

9. José Santo, que bem viste

A alegria dos pastores,

Escutai com atenção

Nossos pios (?) clamores. ( ? suspiros/trinos/gritos de?)

10. Rei dos reis, filho da Virgem,

No presépio foi nascido

Os três reis ofereceram

Ouro, incenso e mirra.

Virgem sempre Imaculada,

Dos mortais o sumo bem,

Alcançai-nos a glória

Agora e sempre. Amén.

Quanto ao Cortejo dos Reis ele é acompanhado com a representação de um auto religioso sobre os acontecimentos do Natal do Senhor, principalmente no episódio bíblico do Rei Herodes, segundo o qual este rei manda matar todas as crianças de Belém para assim eliminar também aquele que pensa ser o seu adversário. Antes do cortejo, todos os actores se preparam e caracterizam com o rigor possível, salientando-se os três Reis Magos com suas roupas exóticas e seus cavalos bem ajaezados. Partem então por caminhos diferentes e inicia-se o cortejo das pessoas com oferendas e dos personagens que interpretam o Auto. Começa na hoje rua P.e José da Graça e, à medida que vai avançando, vão-se integrando cada vez mais pessoas. Continua pela hoje rua professor Ramos, no fim da qual se representa o 1º quadro: “O Encontro dos três Reis Magos”. Estes apresentam-se mutuamente e descobrem que todos tinham seguido a mesma estrela e procuravam o mesmo menino acabado de nascer. Em seguida, o cortejo segue pela hoje rua P.e São Miguel, no meio da qual, se faz a representação do 2º Quadro: a “Cabana dos Pastores”. Estes contam os seus infortúnios do jugo romano e anseiam por um Libertador, sendo-lhes o seu nascimento confirmado pela aparição de um anjo. O cortejo continua então a sua marcha até ao cruzamento desta rua com a hoje rua da Fonte da Meneza. Aqui representa-se o 3º Quadro chamado “ A Cabana do Velho Semião “. A mensagem é muito parecida com a do quadro anterior, mas dá-lhe mais vida uma fogueira, com uma panela ao lume, para onde o Velho vai torcendo umas couves, depois de lhes ter dado um murro nas pontas, à boa e rápida maneira do Seixo. À medida que findam a representação, todos os figurantes deixam o seu pequeno palco e se inserem no cortejo, que é todo acompanhado por alguns músicos e canções apropriadas. Percorrem toda a rua anterior, passam pela hoje Travessa do Cruzeiro e chegam ao Largo do Cruzeiro, onde se representa o 4º Quadro conhecido por “A Fonte de Elias”. Trata-se de uma caravana de Árabes que, com os seus animais e cargas, repousam num pequeno oásis do deserto, junto a uma fonte. Ao verem toda a movimentação do Velho Simeão e dos pastores com os seus rebanhos que se aproximam com cânticos de alegria, perguntam o que se passa e por que vão eles tão apressados. É-lhes contada a história do aparecimento do Anjo anunciando o nascimento do Messias em Belém e uma “cigana” canta uma bonita canção sobre o acontecimento. Em cada ano, é cuidadosamente escolhida a moça que deverá figurar como cigana, sendo o timbre, a afinação e clareza de voz os factores decisivos para a sua escolha. Também estes estrangeiros decidem acompanhar os pastores em direcção a Belém, seguindo o Cortejo pela hoje rua Manuel Figueira, no fim da qual, junto ao Largo da Igreja Velha, se representa então o 5º Quadro, conhecido por “Palácio de Herodes” e onde é dramatizada a narração evangélica do caso. Este quadro é, de facto, o coração do Auto dos Reis Magos e consegue misturar o cómico com o trágico. Quando o Cortejo não termina com este quadro, representa-se um “Presépio Vivo”, no fim do qual se faz o leilão das ofertas. O dinheiro resultante, pagas as despesas, reverte em favor das obras ou necessidades da comunidade. É, na verdade, uma representação tradicional que, antigamente, tinha lugar no Dia de Reis, (6 de Janeiro), e que hoje se faz no domingo mais próximo desta data, congregando sempre muita gente, mesmo de fora da terra.

A propósito do cantar das almas santas benditas, ocorre , no que respeita a usos e costumes, fazer uma breve referência à celebração da morte, que era um momento marcante na vida das famílias seixenses e da comunidade. Normalmente, era precedida pelo ritual religioso da administração da então chamada Extrema-Unção e Viático que era levado em solene procissão pública, pelas ruas, até casa do doente.

Logo após o “passamento”, os gritos sentidos dos familiares eram lancinantes, ecoando por toda a freguesia. A estes juntavam-se depois, algo fingidos, os das “carpideiras”, mulheres com um jeito especial para fazer o pranto, fazendo o elogio fúnebre mediante narração, a propósito e despropósito, das principais facetas da vida do falecido.

Mais interessante era o acto social que, até aos anos 60 do séc. anterior, tinha lugar após o funeral e enterro. Uma boa parte dos chefes de família – marido e mulher – dirigiam-se a casa do falecido com “cestadas” de comida para manifestar a sua solidariedade à família enlutada. Normalmente, era uma “caldeirada” de batatas e bacalhau bem temperadas com muito azeite, vinagre e alho, com o seu odor típico. Hoje, esta ementa é conhecida “ Caldeirada à moda do enterro”. Não faltava também uma terrina com saborosos “filhóses” e uma garrafa de vinho. Todos sentados, no chão, em esteiras que levavam consigo, conversavam animadamente procurando dar ânimo à família enlutada que, pela quantidade de “cestadas”, avaliava a sua aceitação social. A manifestação social do luto era realizada pelo parar do relógio da sala após falecimento (talvez simbolizando a presença da eternidade sem tempo), pelo fechar das janelas da casa e pelas roupa preta que se passava a usar durante um certo período de tempo, consoante o grau de parentesco com o falecido. No caso de marido e mulher, pela morte de um, o luto podia ir até ao fim da vida se, entretanto, não acontecesse um novo casamento.

 

Durante as noites da Quaresma, a juventude masculina ia de casa em casa, cantando ou rezando às almas santas , e recebendo em troca o que cada família dava com devoção para Missas e preces em memória dos seus que já tivessem partido. Organizavam-se dois grupos de rapazes que, depois de um pequeno ensaio (a melodia e a letra já faziam parte da memória colectiva) faziam o peditório nos seus lugares de residência: Seixo ou Cabeças-Verdes e Marco Soalheiro, Chegado a qualquer casa, após a saudação, vinha a tradicional pergunta: « Quer que cantemos ou rezemos?». Obtida a resposta, o coro dividia-se em duas partes, cantando uma os dois primeiros versos de cada quadra, e a outra os restantes. Só nas duas últimas quadras, criando vozes, cantava todo o coro. Era, de facto, belo o ecoar, pela calada da noite, do cântico a vozes masculinas da melodia (1) e letra que se transcrevem, muitas vezes com os dois coros em despique:

Seguiam-se as despedidas:

 

– « Boa noite e Inté amanhê. Que sobre o que lhe fica! » – por parte dos rapazes; e — «Inté amanhê, mocidade. Deus aceite as vossas passadas » – por parte dos donos da casa.

Outra tradição era a oração de acção de graças , à noite, no fim da ceia. As famílias do Seixo sempre foram muito religiosas o que se reflecte até no número de 20 sacerdotes e também no elevado número de freiras daqui naturais, inigualável em nenhuma outra freguesia da Diocese, apesar do reduzido tamanho e número de fogos da paróquia.

1. Ajoelhemos in terra,

Já não semos os primeiros;

Nossa companhia banha

Jasus Cristo Verdadeiro.

 

_____________

2. Ó Virge da Piedade,

A divoção nos obriga:

Rezemos às almas santas,(ou: a pedir p´r´às almas…)

Rezemos com alegria.

 

3. Ó almas santas benditas,

Pedi ó Nosso Sinhore

Qu´ esta nossa uração

Seijain bossoloivore.

 

4. Seijain bosso loivore

Mai´lo da Virge Maria;

Pelas almas Padre-Nosso,

Por elas Avé- Maria.

 

5. Atrumantadas de dores,

Em continas padecendo,

Assim são nas almas santas,

No Prugatóiro ardendo

 

6. Ouvi, homes e mulheres,

Deste povo auditóiro:

Dai esmola, se puderes

Às almas do prugatóiro.

 

7. Como Lázaro vos pede

Que não vendeis as fazendas,

Reparti as migalhinhas

Que crescem das bossas mesas.

8. Esses bens que possuides

Ai! Reparti-os nesta vida

Lá os achareis na glóira

Quando fores na partida.

 

9. Das almas do prugatóiro

É bem que nos alembremos;

Todos hemos de morrer.

Sabe-o Deus p´ra onde iremos.

 

10. Essa ismola que vós dais

Não cuidais que a comemos;

É para dizer de missas

À divoção que trazemos.

 

11. Rezemos às almas santas

Rezemos com alegria:

Pelas almas, Padre-nosso,

Por elas, Avé Maria.

(Rezavam-se estas orações)

12. Nós que estemosdi joelhos

A rezar uma oração;

Ó nos banham dá- l´ ismola,

Ó de Deus banh´ ó perdão.

 

( Entregava-se e recebia-se a esmola )

 

13. Vós que desteis la esmola

Deste-la com dibução;

Na terra achareis o prémio,

Lá no céu a salvação.

 

14. Eu hei-de assubir ao céu,

Ai! Por uma continhas brancas;

Ess´ ismola que bós dendes

Seja pelas almas santas.

 

15. Aí vem nossa Sinhora

Ai, com seu Menino Deus,

Ess´ ismola que bós dendes

Seja por amor de Deus.

 

16. Ó debino Sacramento,

Sendo lo mesmo Sinhore,

Acompanhai nossas almas

Quando deste mundo forem.

 

17. Muito me pesa, ó Sinhore,

Muito me há-de pesar

Não estar apreparado (…. aparelhado)

P´ra bos ir acompanhare.

 

18. Eu apreparado estou

Ai! Par´ ó reino ir gozare,

Já o sacrário está aberto

Para Vos acompanhare.

 

19. Já o Sacrário está aberto,

Já o Senhor anda fora,

Foi visitar uma alma

Que se estava ind´ imbora

 

20. Já o Sacrário está aberto,

Já o Senhor anda dentro,

Foi visitar uma alma

Qu´ estava em pensamento. (passamento)

 

21. Já o Sacrário está aberto,

Já o Senhor anda dentro:

Estas treze impertações (deprecações, repartições)

Senhor, eu bo las intrego:

 

22. À hora da nossa morti,

Nos tinhais o céu aberto;

As do inferno fechadas

A poder de marteladas.

 

23. Rezemos às almas santas,

Rezemos co´ alegria,

Pelas almas padre nosso,

Por elas Avé, Maria.

 

(Com outra melodia):

 

24. Bós que desteis la esmola

Com essas mãos liberais,

São cadeiras de flores

Que no céu apresantais.

 

25. Ó bom Jasus do Calvário,

Que lá estais na bela cruz,

Peço qu´ as leveis à glória

Para sempre, amén, Jasus.

Ainda outra tradição, cujos principais intervenientes são os rapazes, é as Maias . Conforme o nome sugere realiza-se durante o mês de Maio que deve o seu nome a Maia, mãe de Mercúrio, protectora dos partos, ou ao deus Maius (maior), isto é, a Júpiter.

As Festas de Maio eram, então, “as festas da Primavera e da renovação da Natureza que, até há pouco tempo, constituíam um costume generalizado em toda a Europa, que oferecia uma mistura de paganismo e de cristianismo. (…) Muitos eram os usos e variantes espalhados pela Europa: crianças percorriam as aldeias dançando e cantando; enfeitava-se uma donzela (a Maia) e um jovem (o Maio) com flores e ramagens; os rapazes costumavam colocar à porta das namoradas ramos verdes e floridos; jovens e donzelas cobertos de folhagem e flores, levavam em cortejo, entre cantos e danças, um grande ramo ou um arbusto; os camponeses percorriam os caminhos e campos com archotes, para afugentar as feiticeiras. (…) “ (1)

A tradição no Seixo era muito diferente das atrás enumeradas e consistia em dois tipos de actividades. Uma era a de escrever, nos muros adjacentes ou nas paredes das casas onde havia raparigas solteiras, durante os Sábados de Maio, mensagens lisonjeiras ou provocatórias, consoante a moça fosse simpática, sociável e de fácil relacionamento em questões de namoro, ou fosse antipática e arisca. Desta forma, o rapaz apaixonado extravasava os seus sentimentos, no sentido da relação ser bem sucedida. Raramente, estas mensagens se dirigiam a outras pessoas ou eram ofensivas e mal educadas. Neste caso, a visada ou alguém substituto tinha o cuidado de tornar, com uma pintura por cima, a mensagem ilegível.

Se tinha a virtude de provocar a bonomia e boa disposição, o costume tinha também o inconveniente de sujar as paredes das casas pintadas e de dar um mau aspecto visual. Hoje, está em vias de desaparecimento e, pelo menos, escreve-se já no pavimento da estrada.

O outro costume das Maias era o de, pela calada da noite, grupos de rapazes, entrarem em casa dos pais das raparigas e retirarem à socapa animais, carros de bois ou outras alfaias agrícolas que, no Domingo seguinte estariam em frente da Igreja, para que todos os que fossem à Missa pudessem ver e rir com as diabruras dos rapazes.

Havia como que uma espécie de disputa entre os pais das raparigas e os rapazes, gabando-se aqueles que a eles ninguém os conseguia “roubar”. Isto era como que um pedido sub-reptício aos rapazes de que o fizessem, pois tal constituía como que um realçar da importância social da moça. Em todo o caso, sem sucesso, os pais sempre dificultavam a operação aos rapazes: fechavam os portões a sete trancas, mantinham os carros cheios de pastos, dependuravam-nos, prendiam-lhe as rodas, sujavam-nos com excrementos dos animais, etc.. Os mais teimosos chegavam mesmo a atar-se às rodas do carro para não serem apanhados desprevenidos. Mas sempre a juventude levava a melhor!

Num dos Sábados dos meses frios, normalmente, mais pelo S. Martinho, procedia-se à matança , “com sua licença, do porco que não tem outro nome” ou cevado que fora criado ao longo do ano.

Além do azeite comprado à medida da necessidade, era este um elemento muito importante no governo de uma casa, no referente às gorduras necessárias para o tempero dos alimentos.

Criado ao longo do ano principalmente pela dona da casa, que lhe dispensava todos os cuidados necessários, chegava-se mesmo a uma certa afectividade, traduzida no dia da matança por uma lágrima furtiva, principalmente, se o porco tinha sido manso e de boa boca. Por outro lado, este seria também um pouco o sentimento de todos perante uma vida a que, por necessidade e escalonamento da vida, se ia pôr fim de forma um tanto violenta. Daí, talvez, os ditos piadéticos de circunstância atenuadores do momento.

Manhã cedo, chegados os convidados, tomado o mata-bicho (um pequeno cálice de aguardente, em jejum) e o pequeno almoço, preparava-se o carro ou a carroça deixando-lhe um único fogueiro na traseira, onde se prenderia a perna do porco – elemento muito importante para a sua imobilização.

O mais destemido e arrojado entrava, então, no curral do animal e, olho adiante e outro atrás, com medo de alguma mordidela lá conseguia atar, com um nó de correr, uma corda a uma das pernas e outra ao focinho do animal. Pronto o trabalho, mandava abrir a porta, saindo o porco já a contra gosto e sendo obrigatoriamente encaminhado pelo grupo para junto do carro. Aí, era derrubado e, pegado a peso na posição de deitado, era posto sobre o estrado do carro na posição exigida pelo matador, sendo-lhe atada a perna ao fogueiro, o focinho ao toiço ou varal, o maxilar inferior ao superior, para evitar os seus grunhidos estridentes. Seguro em diversos pontos, principalmente na zona do cachaço, lavava-se então com água quente a zona da barbelada, onde iria ser espetada a faca. O matador benzia-se e era o momento da grande interrogação!… A faca lá entrava e ou acertava em cheio na caixa dos pirolitos ou ia mal encaminhada cortando as goelas ou batendo na espádua. No primeiro caso, o sangue saía as golfadas para o alguidar do sarrabulho, o primeiro; e para o alguidar da morcelas, já com vinho e cebola para evitar a coagulação, o último. No segundo caso, entre aflições e piadas, o matador lá teria de remediar a situação, até a faca não vir seca. Mas diga-se, em abono da verdade, que nunca nenhum porco se deixou de comer, embora alguns ainda tenham dado algumas voltas pelo pátio, após esta operação.

Solto o provável último suspiro, descia-se o animal para o chão e solenizava-se o momento com mais algum aconchego para a boca.

A operação seguinte consistia na chamuscadela. Com agulhas de pinheiro a arder, progressivamente, a partir do focinho do animal até ao seu rabo, procedia-se à queima dos pelos e à crestadela da pele de ambos os lados do bicho. Momento solene era quando se arrancavam as unhas das patas e se entregavam às crianças para as irem semear no quintal para nascerem novos porcos. Era o processo pedagógico de atenuar tensões negativas ocasionadas pela agressividade da matança, ao mesmo tempo que se obrigava a criança a reagir perante a sensação do quente, com presumível galhofa para os maiores. Findo este trabalho, seria de bom tom oferecer mais uma bebida, porque as manhãs eram bem frias.

No passo seguinte, procedia-se à limpeza do coiro cabeludo do animal com água, uma telha, sal e facas a raspar. Dava-se um corte em ambos os cantos da boca para facilitar a sua lavagem com água. A operação terminava quando alguém dizia a frase: “Já pode ir amanhã à missa!…” E mais um copo!

De seguida, punha-se o animal de barriga para o ar, normalmente, em cima de sacos que facilitassem a sua pega para a dependura. Executava-se a operação denominada de fazer o cú, que consistia em libertar do recto a porcaria acumulada, atá-lo com um fio e cortar em círculo a carne à volta do ânus de forma que este ficasse totalmente despegado e se pudesse depois puxar, sem problemas, pelo interior da barriga, quando aberta. Nas patas traseiras, cortava-se também o coiro e aliviavam-se os tendões de forma a que pudesse entrar a alpréche, alpranche ou chambaril (pau em forma de acento circunflexo, com uma incisão em cada extremidade, que atado às patas traseiras servia para dependurar o porco por meio de uma corda (a penduradeira), atada no seu meio.

Dependurado o porco, seguia-se então a extracção das suas vísceras para o que era feito um corte de alto a baixo de ambos os lados exteriores dos mamilos, abrangendo a chama pituga donde era retirado o piçalho, nos machos -, sendo cortados os ossos do peito, na zona entre as mãos, e alçada e enfiada aquela por entre as patas traseiras. Cortava-se, então, de alto a baixo, a banha que suporta os intestinos: retirava-se a bexiga ( que se dava aos garotos para eles encherem de ar e servir de bola de futebol ou então, havendo desavença entre eles, inutilizava-se logo ) e deixava-se cair o tripado e outras vísceras para dentro de uma bacia. A operação finalizava com um corte circular no pescoço, outro no lombo acompanhando a coluna vertebral e no rachar das mãos. Era então feita a verdadeira avaliação do animal pela altura máxima do toucinho: “carne de palmo, 15 arrobas”- era a alegria do lavrador e da dona de casa. Acontecia algumas vezes que o lavrador ia buscar um pedaço de toucinho ainda do porco anterior e, vaidoso, dizia para os circunstantes: «Ela viu uma à outra!». Queria com isto exprimir a sua satisfação por o porco anterior ter sido tão grande que tinha chegado para o ano inteiro… mas, às vezes, à custa de que sacrifícios e bom governo da casa.

Finalmente, procedia-se à separação dos intestinos da membrana gordurosa que os liga e à preparação do coração, do fígado com extracção da vesícula (fel), dos pulmões ( lebres ), da língua, etc..

Terminados estes trabalhos, podia fazer-se uma pequena merenda com febras a coiratos assados na brasa.

O porco ficava dependurado, a escorrer, até à madrugada seguinte, altura em que era baixado e desmanchado, isto é, cortado e separado em partes. Com o sangue que tinha ficado para as morcelas, misturado com alguns pedaços de gordura, enchiam-se algumas tripas que, depois de cuidadosamente cozidas, se punham a secar no fumeiro da chaminé. Eram as morcelas.

O toucinho e os ossos eram imediatamente postos no caixão (salgadeira), com sal. Uma parte da peituga e dos coiratos era cortada, com algumas banhas, para fazer torresmos; outra, juntamente com algumas tripas e o coração iam para uma cântara com vinho e alho para os chamados vindos-d´-alho. As febras ou eram cortadas em pequenos pedaços para fazer as chouriças ou linguiças, ou em pedaços maiores que se iam conservar, num cântaro, em salmoira ou em sal no caixão. Normalmente, não se esqueciam as ofertas: para o médico, o professor dos filhos, o prior e algum familiar.

Mas, em abundância, eram logo gastas num almoço – a que se chamava as febras – com a família e os netos da casa. Guisadas em puro vinho, com algum tempero, com batatas, eram regaladamente comidas pela família que assim reforçava os seus laços de união e amizade à volta da mesa, no dia do Senhor.

 

Adaptado de A CASA GANDAREZA EM SEIXO DE MIRA: sua vida, usos e tradições de Maria Isabel da Conceição Oliveira das Neves